A Língua Portuguesa - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A Língua Portuguesa

[…] Recordo, com profundo respeito, a evolução, a ascensão gloriosa desta língua em que palpita e resplandece a própria alma da Latinidade. Com que ternura a vejo surgir da fala galega – primeira fonte, simples veio de água cristalina –, brincar nos versos arcaicos de D. Dinis, tão primitiva como a falariam, se a sua pedra pudesse animar-se, os reis e os apóstolos do pórtico da Glória, de Santiago! Com que desvanecimento a sinto, já corrente murmurante, tomar vulto na prosa inda bárbara de Fernão Lopes – surpreendente pintura da Idade Média, tropel confuso de desordens e onde retinem armaduras, gritam arautos, soam trombetas –; cantar e bailar nas doiradas éclogas pastorais de Gil Vicente; esplender, como as pratas cinzeladas da Renascença, nos graves sonetos italianos de Sá de Miranda! Com que orgulho ela se levanta em arco triunfal – língua de conquistadores e de dominadores –, solene na ÁSIA de João de Barros, ofuscante nas oitavas de OS LUSÍADAS, tão sonora que a ouviu no século XVI o mundo inteiro, tão universal que une, no fulgor do seu abraço, todos os continentes e todos os oceanos! Ainda há pouco pequeno ribeiro onde se afoga o rouxinol de Bernardim, já a vejo, já a oiço marulhar em ondas na eloquência de Vieira; alargar em estuário no límpido vernáculo de Bernardes; ulular em tempestades na prosa trovejante de José Agostinho; e, por momentos, tranquila, fluida, transparente, luminosa, na graça ateniense de Garrett, agitar-se de novo, rugir, bramir, uivar, altear-se em vagas, referver em cachões, palpitar de confrangedora, de infinita dor humana, nas novelas de Camilo e nos sonetos de Antero. Língua batida na forja dos combates, rezada no horror dos naufrágios, língua de dor e de amor, que tem a eternidade da pedra nos padrões dos navegadores, o toque de bronze na voz imperial de Albuquerque, a humildade das pombas na lírica de João de Deus,– como não havemos nós de a amar, se ela é feita do melhor do nosso sangue e da nossa glória; se ela é a mais viva expressão da nossa imortalidade; se – obra laboriosa dos séculos! – ela viveu antes de nós e viverá para além de nós; se ela é, enfim, o vínculo imortal que nos une e a voz dos mortos que nos fala!

Fonte

In Domingos Pechincha e J. Nunes de Figueiredo, Alma Pátria – Pátria Alma, Porto, Porto Editora, s. d., p. 10.

Sobre o autor

Júlio Dantas (Lagos, 1876 – Lisboa, 1962) distinguiu-se como um dos maiores intelectuais do século XX. Foi médico oficial do Exército português, mas dedicou-se sobretudo à poesia, ao romance e ao jornalismo, ficando conhecido como dramaturgo com A Ceia dos Cardeais (1902). Foi Ministro dos Negócios Estrangeiros e embaixador de Portugal no Brasil, bem como diretor do Conservatório Nacional de Lisboa. A partir de 1922, presidiu a Academia de Ciências de Lisboa. Da sua obra, destacam-se: Paço de Vieiros (1903), O Reposteiro Verde (1921) e Abelhas Doiradas (1920).