A língua portuguesa* - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Antologia Artigo
A língua portuguesa*

A língua portuguesa é, sem dúvida alguma, uma língua particularmente harmoniosa e musical. Os seus ritmos são doces; as palavras que a tecem, em geral desprovidos de acentos, são tristes como côres de tons pálidos, e expressam-se sempre em voz baixa. Isto dá nevoeiro de ideal à prosa, e presta serviços inestimáveis ao artista melancólico, que é por via de regra português.

É a pobreza de acentos que dá carácter e riqueza à nossa língua. Os temperamentos outonais falam de-pressa e falam baixo: a fala dos poetas líricos é sobretudo em tom menor, pois que as mais das vezes se queixam e choram. O espanhol, ao contrário, pronuncia rijo e acentuado, o francês de tal modo acentua e faz valer cada sílaba, que só é tolerável ouvi-lo quando peneirado e atenuado através da voz feminina. Por homens não posso ouvir  falar francês: magoa-me; o accent, à força de variado, é impertinente. […]

O português, não — ainda bem que não. O português come as palavras, dizem as pessoas de bom-senso; não se entende senão com dificuldade, notam os estranjeiros. Em vez de separar cada palavra ou cada frase com diferenças de acento e de tom, mistura-as numa gaze geral, e vai transitando de umas para as outras por gradações imperceptíveis. Certamente, para servir em relatórios sábios ou em compêndios de aula, a linguagem nítida seria mais prestável: mas a Arte é irmã do mistério, e quanto mais velada se mostrar, mais interessante é. Uma língua assim, de acentos nublados, com palavras que dão a entender muito mais do que dizem, pode não ser uma língua de críticos e de eruditos, mas é a língua sugestiva e modelar dos poetas e dos artistas. […]

¿Que prosa teem os homens de letras de fabricar com esta linguagem privilegiada? A prosa simples e sólida, insinuando mais do que explicando, escorrendo emoção, doçura e entusiasmo — prosa de apóstolos e não de mestres — única que nunca soará falso, mesmo nos dias difíceis do Vale de Josafate! […]

O português não comporta a prosa ornada de vidrilhos, como oiropéis exteriores ocultando a pobreza íntima. Quer vê-la simples, o que não quer dizer superficial. Em bases resistentes, regida por construções gramaticais rijas e profundas, o trabalho todo vai em fazê-la voar e i-la tornando leve e aérea, ao mesmo tempo que dela se apossa a fantasia. […] Na frescura espontânea de Oliveira Martins há muito encanto; e certas proclamações de Antero ainda lembram a fala dos nossos avós. Mas a beleza, a harmonia, a graça da língua portuguesa ficaram sobretudo dentro de algumas páginas de Garrett, e é ali que há-de buscar a semente quem quiser neste terreno pisado e abandonado da literatura nacional fazer crescer árvores que se vejam.

Fonte

* Palavras Loucas [1895], in Paladinos da Linguagem, vol. II, Lisboa-Paris, Aillaud & Bertrand, 1922, pp. 45-51 (manteve-se a grafia original da fonte utilizada).

Sobre o autor

Alberto d'Oliveira (Porto, 1873 – São Mamede de Infesta, 1940), foi um poeta português. Frequentou a Universidade de Coimbra, onde fundou, junto com António Nobre, a revista Boémia Nova. Colaborou, também, na Revista de Portugal, fundada por Eça de Queirós. Ficou ligado ao movimento neogarretista, sob a figura tutelar de Almeida Garret. Mais tarde dirigiu o semanário monárquico e integralista Acção Nacional (1921) e dedicou-se à redação de páginas de memórias dos tempos em que havia sido cônsul no Brasil. São da sua autoria obras literárias como: Palavras loucas (1894), Memórias da vida diplomática (1926), Vida, poesia e morte (1939).